Paulo Avelino
Vicente Rosal Ferreira Leite deu
de presente esta pequena paisagem de 20 por 15 centímetros no dia 5 de junho de
1941. Pintou-a com tinta a óleo, sobre madeira, e a dedicou a um casal de amigos.
E morreu quatro meses depois, de infecção rápida e generalizada. Exatamente
quando sua carreira subia um ponto, premiado que fora com uma bolsa para
estudar na Europa.
Essa Informação pode fazer ver a
obra sob a ótica da melancolia. Como também nos pode fazer pensar a questão da
presentificação na arte.
Vicente Leite chamou esse quadro
de “Sapucaieira”. Gostava de paisagens. Gostava particularmente desta árvore da
Mata Atlântica, a Lecythis pisonis, muito
comum no Rio, naquele Rio dos anos 40 bem mais cheio de Mata. Outro quadro
dele, exposto na Galeria Multiarte de Fortaleza em 1995 e intitulado “Sapucaieiras”
nos permite localizar com razoável certeza o local da pintura: o bairro do
Cosme Velho, na cidade do Rio.
Paisagens são, ao primeiro
pensamento, banais. São fixas, baratas e sempre disponíveis – ao menos para quem
mora perto. Se o forte da fotografia é presentificar o momento, a paisagem
consiste no menos fotografável dos temas. De fato, a grande maioria das
paisagens só se valida com a presença de alguém em primeiro plano – nós dois em
frente ao Corcovado, tia Eliete quando visitou o Palácio de Inverno em Petersburgo
– e então a paisagem se transforma, literalmente, em fundo.
E ao segundo pensamento a paisagem
consiste no mais inacessível dos temas. Primeiro por uma razão prática. Agarrados
ao volante, espiamos de esguelha ao espelho d´água do lago ou ao pequeno bosque
de castanholeiras – com medo de um acidente que desvie nosso caminho para o
hospital. E no ônibus o aperto e a preocupação nos conduzem a bem longe de especulações
estéticas. Quanto à paisagem urbana, a massa de concreto enferrujando e de
vidro apenas nos afunda para dentro de nós.
Há uma razão mais profunda. Não é
só a pressão urbana, nossas vidas nos desconectam. Não vemos a praia pela
janela enquanto ajeitamos a gravata, não percebemos o detalhe da escultura na entrada
do Louvre, com medo dos batedores de carteiras e dos horários da excursão. A
própria vida nos faz não ver.
A Arte presentifica – ou torna
visível. Que fique claro, não tenho uma sapucaieira em meu apartamento. Os
dicionários de árvores me dizem que podem chegar a trinta metros, e isso já
fala por si. Tenho um pequeno pedaço de madeira plana com tinta seca por cima. O
resto é o talento de um pintor há muito falecido. O que torna falsas as
discussões sobre se a pintura figurativa é o real. Se é real, não é pintura.
Ou, o real é a pintura.
As linhas curvas dominam a
pintura de Vicente Leite. Melhor dizendo, as linhas inclinadas. De fato sua
Arte perde um pouco quando os horizontais e verticais puros se multiplicam na
tela, às vezes em razão do próprio assunto. Isto faz com que seus quadros onde
há casas e horizontes planos diminuam um pouco sua originalidade.
Nesta “Sapucaieira” Vicente Leite
é muito ele mesmo. Não só por razões geográficas – o Rio onde morava é seu tema
preferido e dentro dele a paisagem serrana – mas pelo jogo de manchas de cor em
linhas inclinadas.
O forte do quadro é sua parte
superior – uma sobreposição em oblíquo de dois assuntos distantes entre si e aproximados
pela tela. Dois assuntos: o céu e a copa em flor, cujo contraste de cores chama
a atenção do espectador, mesmo à distância. A parte inferior marca menos, devido
ao seu cromatismo verde menos contrastante.
A linha oblíqua da serra [a serra
que domina o Rio de Janeiro] domina também a pintura. Ela se baixa para a
direita, como para dar espaço ao elemento principal: o rosado da copa florida,
recortado contra o azul. Fayga Ostrower dizia que um quadro se vê em linha
diagonal de cima para baixo e da esquerda para a direita – e neste quadro tal
noção se realiza. O olhar desliza pela linha da serra e se fixa na árvore.
Demora por lá, e de lá desce pelo seu tronco e procura distinguir elementos
mais próximos do chão e nele se situar: as moitas, a relva.
As pinceladas são rápidas, às
vezes quase manchas. Tomadas em conjunto é que formam a cor do volume que
representam. O que mostra que as conquistas do impressionismo e de Van Gogh não
eram estranhas ao artista. Quanto ao ser humano, ele não está ausente – é claramente
o seu olhar que delineia tudo. O ponto de vista é o de uma pessoa adulta em pé,
postada a dez ou mais metros da árvore, a observar uma serra obviamente muito
mais alta.
A Natureza de Vicente Leite não é
a Natureza Terrível dos românticos, de um Caspar David Friedrich, por exemplo. O
homem não se coloca nela como elemento estranho em busca de seu próprio
sentido. Em Vicente Leite o homem vê a natureza em certo recorte, definindo
seus limites e portanto criando-a.
Antes mais do que hoje, árvores
da Mata Atlântica eram comuns naquela região. Mesmo das janelas dos ônibus de
hoje ou dos lotações da época a visão da silhueta de uma bela serra não era um
evento de provocar manchetes. Volta-se à eterna questão: por que pintar mais
uma sapucaieira se há já tantas?
Há. Mas nós não as vemos. A Arte
nos faz comparar, recriar, perceber – ver, enfim. Por alguns momentos o tempo para.
E aquela jovem sapucaieira lá dos
anos 40 em algum pedaço de serra no Rio de Janeiro nos faz parar e ver, até
hoje.
[Sapucaieira. Assinatura Canto
Inferior Direito (CID). Datado no verso 5/6/1941. Óleo sobre madeira. Coleção
particular]
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