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terça-feira, 13 de fevereiro de 2018

03 - Elementos de uma estética politicamente correta - I

Em fevereiro de 2018 certa galeria pública britânica retirou uma pintura de suas paredes. “Hilas e as Ninfas” não é muito conhecida fora da Inglaterra, assim como não é o seu autor John William Waterhouse, que a pintou em 1896. No entanto os seios das sete moças expostos na pintura perturbaram a equipe de curadores, que decidiu, segundo eles mesmos, estimular o debate.

Esse episódio permite destacar alguns elementos do que podemos chamar, inadequadamente, de estética politicamente correta, ou PC.

Quando o professor Harold Osborne publicou a primeira edição de sua Estética e Teoria da Arte em 1968 tal visão não existia. É com base nesse ótimo compêndio das ideias estéticas na História que faremos esta exploração.

Os curadores informaram que sua atitude foi inspirada pelo movimento #MeToo, uma iniciativa de denúncias públicas sobre supostos crimes de ordem sexual. Nos artigos a favor ou contra a retirada constam argumentos esclarecedores: exploração do corpo da mulher; estímulo ao desejo sexual masculino (male gaze); algumas das ninfas parecem ter menos de dezoito anos; as atitudes quanto à mulher mudaram, as instituições de arte devem mudar também.

Contra a retirada da pintura afirmou-se: o pintor só usou uma modelo, para as sete ninfas, e esta era maior de idade; as ninfas atraíram Hilas para afogá-lo, não para se entregarem a ele.

Discute-se um antes e um depois da obra: a idade de uma modelo morta há muito; as repercussões na sexualidade de alguns espectadores; a legalidade, considerando-se a legislação de hoje sobre a proteção a menores; a necessidade de se integrar a movimentos sociais de hoje; se as ninfas estavam sendo seduzidas ou se tinham outras intenções.

Discute-se um antes e um depois: a pintura em si é virtualmente esquecida. Note-se que nos argumentos, contra e a favor da retirada, aquela tela pintada estendida em uma armação de madeira perde importância.

Uma primeira constatação salta: a estética PC se integra no grande bloco de teorias instrumentais da arte. Estas preconizam que a Arte deve servir para alguma coisa fora delas. Alguma coisa que pode ser a pátria, a elevação moral, o ensino das massas, a revolução, o entretenimento, ou mesmo, no caso dos românticos, a expressão de emoções.

No caso, a estética PC argumenta que uma obra de arte deve ser julgada por sua adequação ou não a movimentos sociais contemporâneos. Dentro desse debate, faz pleno sentido se discutir a idade de uma moça no final do século XIX ou a possível resposta sexual de alguns cavalheiros ante a representação de seios. Isso é muito mais importante o que enfatizar composição, visão diagonal da obra, posicionamento dos elementos, harmonia de cores. O olhar do esteta PC se fixa no que lhe interessa: no caso, seios, e suas repercussões.

A estética PC portanto não pertence aos dois outros blocos de teorias: o naturalismo, que acredita que a arte deve imitar uma realidade fora dela, e o formalismo, para o qual a obra é autônoma e regida por suas próprias leis.

Prossigamos no próximo artigo.

sábado, 13 de janeiro de 2018

02 - A Sapucaieira de Vicente Leite, ou a presentificação da paisagem


Paulo Avelino 



Vicente Rosal Ferreira Leite deu de presente esta pequena paisagem de 20 por 15 centímetros no dia 5 de junho de 1941. Pintou-a com tinta a óleo, sobre madeira, e a dedicou a um casal de amigos. E morreu quatro meses depois, de infecção rápida e generalizada. Exatamente quando sua carreira subia um ponto, premiado que fora com uma bolsa para estudar na Europa.

Essa Informação pode fazer ver a obra sob a ótica da melancolia. Como também nos pode fazer pensar a questão da presentificação na arte.

Vicente Leite chamou esse quadro de “Sapucaieira”. Gostava de paisagens. Gostava particularmente desta árvore da Mata Atlântica, a Lecythis pisonis, muito comum no Rio, naquele Rio dos anos 40 bem mais cheio de Mata. Outro quadro dele, exposto na Galeria Multiarte de Fortaleza em 1995 e intitulado “Sapucaieiras” nos permite localizar com razoável certeza o local da pintura: o bairro do Cosme Velho, na cidade do Rio.

Paisagens são, ao primeiro pensamento, banais. São fixas, baratas e sempre disponíveis – ao menos para quem mora perto. Se o forte da fotografia é presentificar o momento, a paisagem consiste no menos fotografável dos temas. De fato, a grande maioria das paisagens só se valida com a presença de alguém em primeiro plano – nós dois em frente ao Corcovado, tia Eliete quando visitou o Palácio de Inverno em Petersburgo – e então a paisagem se transforma, literalmente, em fundo.

E ao segundo pensamento a paisagem consiste no mais inacessível dos temas. Primeiro por uma razão prática. Agarrados ao volante, espiamos de esguelha ao espelho d´água do lago ou ao pequeno bosque de castanholeiras – com medo de um acidente que desvie nosso caminho para o hospital. E no ônibus o aperto e a preocupação nos conduzem a bem longe de especulações estéticas. Quanto à paisagem urbana, a massa de concreto enferrujando e de vidro apenas nos afunda para dentro de nós.
Há uma razão mais profunda. Não é só a pressão urbana, nossas vidas nos desconectam. Não vemos a praia pela janela enquanto ajeitamos a gravata, não percebemos o detalhe da escultura na entrada do Louvre, com medo dos batedores de carteiras e dos horários da excursão. A própria vida nos faz não ver.

A Arte presentifica – ou torna visível. Que fique claro, não tenho uma sapucaieira em meu apartamento. Os dicionários de árvores me dizem que podem chegar a trinta metros, e isso já fala por si. Tenho um pequeno pedaço de madeira plana com tinta seca por cima. O resto é o talento de um pintor há muito falecido. O que torna falsas as discussões sobre se a pintura figurativa é o real. Se é real, não é pintura. Ou, o real é a pintura.

As linhas curvas dominam a pintura de Vicente Leite. Melhor dizendo, as linhas inclinadas. De fato sua Arte perde um pouco quando os horizontais e verticais puros se multiplicam na tela, às vezes em razão do próprio assunto. Isto faz com que seus quadros onde há casas e horizontes planos diminuam um pouco sua originalidade.

Nesta “Sapucaieira” Vicente Leite é muito ele mesmo. Não só por razões geográficas – o Rio onde morava é seu tema preferido e dentro dele a paisagem serrana – mas pelo jogo de manchas de cor em linhas inclinadas.

O forte do quadro é sua parte superior – uma sobreposição em oblíquo de dois assuntos distantes entre si e aproximados pela tela. Dois assuntos: o céu e a copa em flor, cujo contraste de cores chama a atenção do espectador, mesmo à distância. A parte inferior marca menos, devido ao seu cromatismo verde menos contrastante.

A linha oblíqua da serra [a serra que domina o Rio de Janeiro] domina também a pintura. Ela se baixa para a direita, como para dar espaço ao elemento principal: o rosado da copa florida, recortado contra o azul. Fayga Ostrower dizia que um quadro se vê em linha diagonal de cima para baixo e da esquerda para a direita – e neste quadro tal noção se realiza. O olhar desliza pela linha da serra e se fixa na árvore. Demora por lá, e de lá desce pelo seu tronco e procura distinguir elementos mais próximos do chão e nele se situar: as moitas, a relva.

As pinceladas são rápidas, às vezes quase manchas. Tomadas em conjunto é que formam a cor do volume que representam. O que mostra que as conquistas do impressionismo e de Van Gogh não eram estranhas ao artista. Quanto ao ser humano, ele não está ausente – é claramente o seu olhar que delineia tudo. O ponto de vista é o de uma pessoa adulta em pé, postada a dez ou mais metros da árvore, a observar uma serra obviamente muito mais alta.

A Natureza de Vicente Leite não é a Natureza Terrível dos românticos, de um Caspar David Friedrich, por exemplo. O homem não se coloca nela como elemento estranho em busca de seu próprio sentido. Em Vicente Leite o homem vê a natureza em certo recorte, definindo seus limites e portanto criando-a.

Antes mais do que hoje, árvores da Mata Atlântica eram comuns naquela região. Mesmo das janelas dos ônibus de hoje ou dos lotações da época a visão da silhueta de uma bela serra não era um evento de provocar manchetes. Volta-se à eterna questão: por que pintar mais uma sapucaieira se há já tantas?

Há. Mas nós não as vemos. A Arte nos faz comparar, recriar, perceber – ver, enfim. Por alguns momentos o tempo para.

E aquela jovem sapucaieira lá dos anos 40 em algum pedaço de serra no Rio de Janeiro nos faz parar e ver, até hoje.


[Sapucaieira. Assinatura Canto Inferior Direito (CID). Datado no verso 5/6/1941. Óleo sobre madeira. Coleção particular]